[Refúgio] Appartement Duchamps

Esta doca artificial possui 600 m de comprimento, está próxima do centro de Estrasburgo e atua como o ponto de conexão faltante entre os distritos Sul e o Universitário, no eixo leste oeste que conecta a França à Alemanha. O armazém, assim como toda a doca, passou recentemente por uma revitalização urbanística que tornou a área um verdadeiro pólo turístico-cultural da cidade de Strasbourg. Nele foi proposto uma grande mistura programática, entre programas públicos (como os restaurantes, educação de ensino superior, áreas de exposição ...), habitação e escritórios.


No piso térreo, o edifício existente abriga restaurantes, e os seus terraços mostram as antigas docas. O antigo Tourette foi erguido por um pavimento que possui uma vista panorâmica de 360° para as montanhas dos Vosges e as Montanhas da Floresta Negra que circundam a planície da Alsácia. Outras partes do galpão original também abrigam a Fabrique du Numérique - um espaço de 2000 m criado pela municipalidade para o desenvolvimento de novas tecnologias - além de uma escola de jornalismo e comunicação e outros espaços de escritório. A parte nova (com exoesqueleto metálico) é composta de 67 unidades residenciais com altas performances ambientais, com tipologias que varia de estúdios até apartamentos de 4 quartos.

No Top Floor, os dois apartamentos de 4 quartos localizados no balanço da estrutura foram reformados e transformados num grande apartamento.

Àquela hora, o local estava vazio. Os restaurantes já não estavam mais aberto, tampouco escritórios e afins. O carro estaciona a frente do empreendimento. Alexsander sai do mesmo, observando o local por longos segundos. As luzes dos postes iluminavam a fachada antiga que antes era um edifício industrial e o elemento novo, elevado sob essa. O Toreador é interrompido apenas com o toque suave de Jean-Paul sob seu ombro direito, indicando que estava pronto para guiá-lo.

A dupla sobe os elevadores da área residencial até o Top floor, saindo num corredor externo onde era possível vislumbrar a paisagem do porto mesclada com os pequenos edifícios tradicionais da cidade. Alexsander os observa enquanto se arrastava pelo longo corredor até os dois últimos apartamentos, que na verdade haviam sido reformados para ser apenas um. Ele, por vezes, piscava rapidamente os olhos, conseguindo presenciar sob suas pálpebras a cidade vertendo rubro; as chamas consumindo tudo e a todos. Ele tinha a impressão de escutar os gritos desesperados dos moribundos incendiados.

'- Como proceder...'

Ele não sabia. Talvez nunca soubesse.

Sua epifania oracular cessa ao chegarem finalmente na porta do refúgio. Aubry se antecede e abre a porta para seu Senhor, permitindo-lhe passagem. Alexsander agradece com um sorriso, apreciando cada detalhe que capta desde sua entrada. Hélène havia feito um trabalho primoroso, como sempre fazia. Cada mínimo detalhe! Alexsander passa o Hall de entrada de seu novo apartamento, alisando com a mão direita a superfície plana e fria de suas paredes. Ele atravessa um corredor até o que era o conjunto de salas e cozinha. A escuridão do lado de fora poderia ser vista pela transparência das paredes de vidro que rodeavam aquelas cômodos.

'- Mon cher, brinde uma taça de vinho comigo...'

Jean-Paul, se fosse a alguns anos atrás, estranharia o pedido; Ele, no entanto, não era mais um servo juvenil e inocente. O homem avantajado, de quase dois metros, vai até a cozinha e retira uma garrafa de vinho da geladeira, abrindo-a e servindo duas taças pela metade. Enquanto ele fazia isso, o jovem Ancillae perambulava pelo Estar, parando diante de uma escultura sob um aparador de madeira enegrecida. Era a cabeça de um touro esculpida, altamente detalhada e com longos chifres folheados com ouro.


Duchamps alisava cada detalhe da obra com o indicador de sua mão direita. Era uma de suas preferidas, dada por Katherine como advento da relação que eles construíram. Ela havia lhe explicado durante uma noite inteira sobre a história antiga, como Ishtar era a descedente querida de Cain e como ela precisou fugir da Primeira Cidade para escapar da ira dos seus Doze Irmãos. A estadia da dançarina-toreador em Creta era uma das partes mais fascinantes para o jovem; como ela havia Abraçado o filho de Minos, o rei de Creta, e como esse havia sucumbido a besta até a insanidade. Quem diria que o Minotauro era nada mais, nada menos, que uma Criança da Noite enlouquecida diante do prenuncio da imortalidade. Um verdadeiro tolo, diga-se de passagem!

'- Alguns não sabem apreciar as dádivas que lhe são dadas.'

Ele pressionava furiosamente a ponta do chifre do touro bronzeado, em transe. Olhos nos olhos. Um filete rubro desce pelo córneo antes da aproximação de Jean-Paul. Quebrado o transe, Alexsander lambe a ferida insignificante, aceitando a taça de seu querido carniçal.

'- Que Hélène e Julie não fiquem chateadas, mon cher, mas a ocasião pede um final de noite assim.' - ele ergue a taça e brinda: '- À nós e a esse novo recomeço!'

O carniçal toma de sua bebida. Alexsander, porém, apenas injeta um gole da mesma dentro de sua boca, experimentando a sinestesia de sabores invadirem suas paletas gustativas adomercidas. Era de uma safra muito boa! Após cerca de um minuto, o Toreador retoma o vinho para dentro da taça, pousando-a na mesa de centro. Ele se senta no sofá, apreciando a vista existente na varanda que se estendia a frente do mesmo. Ele hesita.

'- Me siga, s'il vous plaît.'

Ele se ergue mais uma vez e vai até a varanda do seu novo apartamento, apreciando melhor a vista noturna.

'- Tempos complicados se avizinham, Jean-Paul. Essa cidade é um verdadeiro conluio dos infernos! Preparem-se para o provável e o improvável!'

Ele fica ali apreciando o horizonte. O sol nascia na outra extremidade do edifício, mas Alexsander gostava de imaginar que poderia ver o mesmo despontar diante de seus olhos. A mera ideia de sentir as ondas aquecidas dos raios solares trás a tona o comichão, como se tivesse queimado a sua pele. Era uma sensação agoniante! Alexsander passa as mãos sobre seu rosto, enfiando os dedos nos seus cabelos desgrenhados e repuxando os fios várias vezes.

Estava satisfeito por aquela noite!

'- Me leve até os meus aposentos, Jean-Paul! No caminho lhe passarei algumas diretrizes para serem feitas durante o meu sono.'

Ele é guiado pelo carniçal, passando todas as recomendações e pedidos que Jean-Paul devia delegar a si e as outras duas carniçais do Toreador. Quando finda, ele já estava na porta de seu quarto. O mesmo agradece mais uma vez e se despede de seu lacaio, adentrando seus aposentos. O quarto ficava exatamente no meio do apartamento, não possuindo nenhuma janela ou qualquer tipo de abertura que fizesse o sol adentrar por um palmo dali. Trancado, o mesmo se despe completamente e segue até o banheiro, fazendo a higiene de seu corpo rapidamente. O sono já brotava em suas pálpebras. Ele não tinha muito tempo.

Nu, Duchamps se joga sob os lençois finos de sua cama, munido de seu sketchbook. Ele se senta apoiado sobre as almofadas, começando a desenhar - finalmente! - a cena que havia presenciado sobrenaturalmente com a aproximação de Jean-Pierre. O acidente de avião. Aquilo podia simbolizar alguma coisa? Talvez. Alexsander se pega desenhando o cenário minuciosamente. Ele provavelmente pegaria no sono com o caderno aberto sobre si. Não se importava, afinal isso já lhe era corriqueiro.

Os olhos entorpecidos do Toreador se abrem para uma nova noite. Um sussurro fúnebre ressoa sob seu ouvido direito e ele apenas não lha dá a devida atenção, afinal a noite seria longa e ele teria muito o que fazer. Alexsander se ergue morbidamente dos lençóis finos que recobriam o seu corpo descarnado suavemente. Ele vai até o banheiro, ainda sonolento, e se coloca sob a água quente da ducha, que esfumaça box, espelho e paredes. Deixava seu rosto ser tomado pela temperatura elevada da água, como se pudesse mais uma vez tomar um "banho de sol"; metáforas para conseguir erguer seu corpo noite após noite. 

Ele força inutilmente a entrada do vapor d'água em seus pulmões artrofiados. Sentia-se pronto para iniciar a noite.

Alexsander escolhe suas vestes do closet de seu quarto e, já vestido, se revela para a área comum de seu refúgio. Sua audição capta duas vozes femininas. Helénè e Julie. Ele segue na direção das ondas sonoras, chegando até a ampla sala conjugada do apartamento. As duas estavam sentadas, jantando, enquanto conversavam despretensiosamente. Havia um prato vazio posto a mesa, diante do qual o Toreador se senta, abrindo um sorriso gigantesco para suas duas crianças, cumprimentando-as:

'- Bonne nuit, ma petites! Vejo que há muito do que se falar... pelo visto, aproveitaram bem a manhã...'

Elas retribuem o sorriso. Quem primeiro fala é Julie, retirando um convite de seu colo. Um convite dourado. Um jantar. Alexsander fica feliz com o que escuta... sua mais nova carniçal tinha muitos talentos e sempre surpreendia-o de maneira positiva. Ele recebe em suas mãos o envelope, abrindo-o e lendo seu conteúdo. Após alguns minutos silenciosos, ele fala:


'- Então eu e ma petite mignon temos um jantar de lançamento para comparecer? É isso? C'est superbe!  Vista seu melhor vestido, minha Julie; quero iniciar a noite da melhor maneira possível... Ainda terei a inauguração do clube Yab-Yum de... digamos que de uma nova grande amiga que fiz na noite passada...'

O jantar poderia ser providencial. Talvez Monte-Cristo pudesse estar presente e ele poderia conversar com ele... a noite passada não havia terminado da melhor forma. Com isso em mente, ele apenas complemente:

'- O que temos mais?'

As duas carriçais vão repassando tudo que mais haviam progredido durante as horas de sono do ancillae. Havia muita informação para se trabalhar sobre. Ele lia atentamente o dossiê feito por Helénè sobre a impressa local quando a porta do apartamento se abre e Jean-Paul desponta do corredor de accueil.

Ele não tinha uma cara muito boa.

Alexsander, que já havia aberto um outro vinho e exibia uma taça meio cheia na sua mão direita, se ergue e vai até o homem.

'- Bonne nuit, Jean-Jean... você parece meio pálido... vamos, tome um pouco de vinho, vai lhe melhorar a te...' - o carniçal recusa a bebida, surpreendendo o Toreador. Ele tinha algo entalado na garganta. '- Allons-y! Vamos! Fale de uma vez!... Oui, je sais... Ela está para chegar, isso eu já sei; não me recordo a hora, quando; isso est votre travail!... Como?... Na noite passada? D'accord, d'accord... E onde está ela?'

A resposta de Jean-Paul para a última pergunta do seu senhor faz Alexsander estagnar. Mais uma vez, ele não estava mais ali. Não, não estava em sua sala de jantar. Ao seu redor, os escombros de um avião em chamas! O cheiro do vinho havia sido suplantado pelo cheiro de enxofre e fumaça! Ele não via mais Jean-Paul, mas via as chamas consumindo cada metro quadrado dos escombros. Ele suava frio.

*O RECADO FOI DADO, SANGUESSUGA DE MERDE! VOCÊ... PRECISA... ESCUTAR! ESCUTAR! ESCUTAR!*

A cabeça do Toreador é invadida pelas vozes mais uma vez. Ele retorna ao seu corpo de supetão. A taça de vinho estava quebrada no chão e o cheiro alcalino de suas lágrimas rubras invadia suas narinas. Ele não conseguia falar. Não conseguia construir um pensamento lógico. Nenhum! Julie e Helénè se levantam da mesa e tentavam se aproximar do seu senhor. A mão de sua mais velha carnical brota sobre seu ombro, mas ele se desvencilha rapidamente. Ele pega a garrafa de vinho da mesa e a joga sobre a porta de vidro da varanda. A garrafa se estilhaça e a porta de vidro se trinca por completo.

Aquilo não podia ser verdade!

Ele anda na direção da varanda, derrubando ao chão tudo que via no caminho. Quadros, livros. Tudo era jogado na direção da varanda pelo Toreador. Ele se aproximava sedento. Havia uma silhueta refletida na porta de vidro. Seria ele próprio? Muito provavelmente... mas não era isso que a mente afetada do cainita via. Ele via a silhueta de Jean-Pierre, acompanhada mais uma vez da Morte. Pareciam velhos amigos. 

Naquele instante, tudo se liga na mente de Alexsander.

'- IDIOTAAAAA! MALDITO VERME AFETADOOOOO! AAAAAAAHHHHHH!'

Com o grito entalado na garganta, o cainita pega a estatueta cretense da cabeça de Touro e joga-a na direção da porta de vidro, quebrando ambas completamente. Seu peito arfava. Seu rosto estava ruborizado, não pelo estresse, mas pelo sangue de suas lágrimas que o manchavam. Ele se joga sobre o vidro espatifado. Suas mãos agarram os dois pedaços mais próximos e pressionam-os com toda sua força. Sangue esvai por entre os seus dedos. Seus olhos se fecham, apreciando a dor do momento. A dor física. A dor emocional.

Alexsander não sabia como ou o por quê, mas sabia que Jean-Pierre havia sido o responsável por aquilo. As palavras conspiratórias de Arthur voltam a sua mente e ele olha para o céu escuro da cidade. Monte-Cristo tinha razão.

O segundo banho em menos de uma hora é mais rápido que o primeiro. O Toreador basicamente se desfaz de seu próprio sangue deixando a água quente escorrer por seu corpo, ruborizando-a. O vermelho aguado descia pelo ralo enquanto ele buscava forças suficientes para continuar a noite que mal havia se iniciado. Deveria ser mais espinho que rosa naquele momento.

Ele desliga o chuveiro e permanece mais alguns segundos a olhar o próprio reflexo sobre a água que ainda descia sob seus pés. Ele sai mais uma vez do chuveiro, vestindo novos trajes. Ele escolhe um terno de corte moderno e completamente negro. Os cabelos enrolados são amarrados num coque curto. Alexsander sai do quarto sem expressões, procurando mais uma vez os carniçais. Tinha uma última coisa a pedir para Helénè antes de partir com Julie para a primeira festa da noite.

Na sua mente, a imagem de Katherine em chamas ainda teimava a assombra-lo, em conjunto com as vozes que ressoavam... e ressoavam...

Alexsander encontra seus carniçais, ainda na sala. Julie estava pronta para irem e estava belíssima, o que arranca um sorriso do rosto do Toreador, que apesar do início da noite já se demonstrava abatido. Ele se aproxima, pegando sua mão e, não transparecendo mais a histeria de minutos atrás, cortejando-a:

'- Estais lindíssima, mon cher. Allons-y?'

Ele volta, então, sua atenção, para Jean-Paul, com feições um pouco mais duras. Era impossível para a mente perturbada do Toreador não associar a cara do carniçal com a notícia pesarosa.

'- Jean-jean, nos leve até o local indicado no convite, s'il vous plaît!'

Ele dá dois beijinhos em Helénè antes de sair e lhe fala:

'- Descanse um pouco, Helénè... Tentarei conversar melhor contigo ao fim da madrugada, isso se essa cidade de merde não me tragar para o olho do inferno!'

Com isso, ele parte junto com os outros dois carniçais, descendo pelo elevador do edifício e pegando o carro no estacionamento subterrâneo.


Segue nas Ruas de Estrasburgo.